segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Uma exploração rigorosa das origens selvagens: Walter Burkert sobre mitos e ritos

Uma exploração rigorosa das origens selvagens: 
Walter Burkert sobre mitos e ritos
(por Glenn W. Most)

O homem, em suas faculdades mais elevadas e mais nobres, é todo ele natureza, e traz em si a inquietante duplicidade desta. Suas capacidades terríveis, consideradas inumanas, por acaso são o único solo fértil onde pode brotar qualquer humanidade nas emoções, feitos e nas obras.  Assim, os gregos, os homens mais humanos dos tempos antigos, mostram um ar de crueldade, um afã de destruição como os de um tigre
(F. Nietzsche – Cinco prólogos  a cinco livros não escritos, 5 – A Competição de Homero)

Os mitos gregos não são inquietantes apenas para nós;  já entre os próprios gregos o eram e não apenas um mito particular que narrava a emasculação ou o despedaçamento de um deus o a loucura e atrocidades de um herói, mas o mito enquanto tal, como explicação que dá sentido às condições da vida humana mediante a narração das façanhas e sofrimentos de personagens sobre-humanos ou demasiado humanos. Desde Homero, todo poeta grego tenha que enfrentar a árdua tarefa de refazer cada vez para um público novo os relatos herdados, as vezes enigmáticos – por causa de uma única mulher uma cidade inteira foi assediada por dez anos e finalmente arrasada; um rei assassinou seu pai e casou-se com sua mãe -, mas sem reproduzi-los asperamente, e tampouco sem alterá-los tão radicalmente que desdissessem a tradição e resultassem pouco plausíveis. Todo historiado que não quisesse limitar-se a sua própria época tinha que ocupar-se das embaraçosas contradições e inverossimilhança dos mitos que, para os tempos mais antigos, eram a única fonte que conheciam. Era preciso reunir, selecionar, transformar e combiná-los. Por mais assombroso que pareça, quase ninguém ousou prescindir-se deles e, mesmo quando Éforo excluiu de sua História Universal os primitivos tempos míticos, sinalizando a impossibilidade de obter conhecimento científico preciso deles, todavia, aceita como ponto de partida seguro as migrações dos filhos de Heracles. Todo filósofo, por mais convencido que estivesse da inferioridade do pensamento mítico, tinha que enfrentar os mitos herdados, fosse refutando-os minuciosamente (entre outras razões, com o fim abrir espaço para os mitos que eles mesmo inventava para o casão, fosse demonstrando cientificamente que suas próprias verdades haviam encontrado já nas lendas mais antigas, uma expressão velada, mas recuperável em sua totalidade mediante a exegese alegórica. No final das contas, nenhuma escola filosófica  antiga podia prescindir da interpretação alegórica, procedimento justificado, inclusive, por Aristóteles e praticado por Lucrécio. 

A plausibilidade poética, a redução histórica e a exegese filosófica foram, por assim dizer, três soluções de emergência mediante as quais os gregos trataram de dominar seus mitos - imprescindíveis, ainda que insondáveis. Se a dificuldade de um desafio se mede pelos esforços repetidos que suscitou, então aqui o surpreendente não é tanto que os mitos gregos sofreram perpetuamente ataques e reinterpretações, mas sim que se mantiveram vigentes durante tanto tempo. Evidentemente a ancoragem na religião do Estado e a educação básica lhes conservava certa proteção, mas por que tantas âncoras persistiram com o tempo e não foram perdendo-se? Sem dúvida, justamente as três  estratégias citadas contribuíram também para assegurar a sobrevivência dos mitos, não só ao longo da acidentada evolução da cultura grega, muito mais de seu acaso: como manancial inesgotável de inspiração literária, como monumento duradouro das épocas mais antigas da história da humanidade, como alusão misteriosa a ensinamentos físicos e morais sublimes, os mitos conseguiram sobreviver a Idade Média e salvaram-se para a Idade Moderna. Tão exitosa foi a salvação que nem mesmo a independência das literaturas nacionais , o desenvolvimento das novas ciências históricas e das novas filosofias na primeira modernidade conseguiram romper o feitiço dos mitos gregos. No século XVIII sucumbiram as formas tradicionais da poesia barroca e da alegoria, mas os mitos já havia muito não necessitavam de tais procedimentos, que em princípio, deveria salvá-los.  Seguiam vivos e gozando de boa saúde. Logo, no século XIX, quase todo poeta romântico podia lançar mão dos mitos clássicos, enquanto a mitologia – que de aí em diante presumia-se científica – dos incipientes estudos clássicos o velho everemismo lançava tardias e extravagantes flores às teorias das lendas tribais de K. O. Müller, como nas diversas variantes da velha alegoresis filosófica em “Simbolismo e Mitologia dos povos antigos” de Creuzer e na “Mitologia Comparada” de Max Müller. 

De fato, o procedimento de todas essas estratégias de interceptação consistia de desacoplar o mito de seu contexto genético e funcional primitivo para integrá-lo aos sistemas literários, históricos e filosóficos europeus. Mas, nenhuma dessas formas de interpretação admitiu isso abertamente; afirmava-se uma vez ou outra que se havia restituído finalmente o mito ao seu sentido primitivo, perdido há muito tempo. No cenário das novas necessidades, o mito se apresenta com a máscara do primogênito, do absolutamente primitivo: seu suposto conteúdo, em detalhes exíguos, segue sempre acompanhado de uma exuberância patética arcaica, que do ponto de vista retórico, contribui com a legitimação do novo sistema mais que aquele. O mito não é igual à ficção: mesmo que sua separação equivalha a uma esterilização, o mito leva consigo uma referência inapagável daquele contexto distante a partir do qual brotou e se formou: “vem de lá e desde lá aponta o deus a chegar” (Hölderlin – O Pão e o vinho). Justamente essa tensão entre o caráter primitivo do mito e sua autonomia, entre religião e arte, entre o perdido e o salvo, produz o inquietante do mito: o mito sempre sobreviveu a si mesmo, e todo sobrevivente é inquietante. 

Os estudos de Walter Burkert sobre a história da religião grega consistem o intento mais importante de entender o aspecto inquietante do mito grego que aparece no âmbito da língua alemã desde a segunda guerra mundial. O núcleo desse intento reside na suposição de uma correlação funcional primitiva entre o mito narrado e os feitos rituais do culto. As variadas fábulas com que se educava as crianças  na antiguidade e (ao menos até há bem pouco) às crianças de nosso tempo, eram mais que um aspecto da religiosidade grega: o mundo grego estava repleto de tempos e santuários nos quais, em intervalos regulares e conformes os costumes herdados dos antigos, se realizavam os ritos em honra às respectivas divindades. Cada comunidade possuía seus próprios cultos, intimamente mesclados ao modo como as pessoas entendiam a si mesmas. A religião grega foi, em alguns aspectos essenciais, uma religião de Estado: a administração dos cargos, das cerimônias e do calendário das festividades figurava entre as tarefas mais evidenciadas da comunidade e fundava sua identidade política. Nos deveres dos cidadãos os atos religiosos confundiam-se com os políticos a tal ponto que a separação conceitual entre religião e política, tão evidente para nós mesmos, não pode ser aplicada aos gregos sem algumas reservas. 

Agora, é certo que muitos mitos gregos nos hão chegado nas formas (de todo familiar para nós) que lhes deram os grandes poetas da antiguidade; contudo, para ter notícia sobre a maioria dos ritos dependemos dos textos mais áridos da erudição antiga – relatos de viagem, tratados, comentários de textos, enciclopédias – cujas informações fragmentárias, que em detalhes se contradizem ou dão margem para mal entendidos graves, podemos complementar ou corrigir apenas em alguns casos afortunados, graças a dados arqueológicos. A eles, é preciso adicionar que, por mais estranhos que por vezes nos pareçam os mitos gregos, de fato seguem parecendo-se para nós (como já se pareciam para a maioria dos informantes clássicos da antiguidade tardia) muito mais compreensíveis que alguns ritos gregos. Que significa, por exemplo, que em Braurón chamassem de “ursas” a umas garotas entre cinco e sete anos que, vestidas de cor açafrão, ofereciam sacrifícios à deusa Ártemis? Ou que as Grandes Dionisíacas, de Atenas, se levassem na solene procissão do sacrifício não apenas a efígie do deus e um touro, mas também um grande número de falos de tamanho sobrenatural? Não surpreende que manuais de mitologia precederam em muitos séculos as primeiras coleções científicas de testemunhos sobre os cultos antigos.

Há exatamente um século, os membros da chamada Cambridge School of Anthropology – W. Robertson Smith, Jane Ellen Harrison, James George Frazer – acreditaram haver encontrado a solução de tal enigma fazendo derivar os mitos de muitos ritos e explicando estes últimos mediante a comparação dos costumes dos povos “primitivos” daquele período. Assim, para Harrison, o mito era a contrapartida falada do ato que se executava no rito: aquele não se entendia sem este. No âmbito das línguas anglo-saxãs, tal concepção exerceu uma influência duradoura sobre a imagem que se tinha da cultura grega, mas nos estudos clássicos alemães nunca chegou a arraigar-se realmente devido, em parte, a um justificado ceticismo ante os paralelismos forçados e as generalizações pouco fundadas e em parte a uma resistência pouco econômica à mera ideia de que os gregos, exemplares de tudo, podiam equiparar-se em algum aspecto relevante aos “selvagens” povos primitivos. Como resultado de tudo isso, na Alemanha houve uma separação durante um tempo quase insuportável entre o estudo dos mitos e o estudo dos ritos: o estudo dos mitos se subordinava ao estudo dos poetas, já que estes haviam inventado livremente aquelas fábulas (Wilamowitz escreveu: “os mitos são sagrados; os poetas relataram e os transformam”), e ficava excluídos dos manuais de história da religião grega; por sua vez, os manuais se limitavam majoritariamente a oferecer uma exposição sistemática dos resultados da investigação dos ritos. A palavra religiosa e o ato religioso, e em última instância mantiveram-se separados até mesmo o poeta, que inventava a fábula, e seu povo, que executava vez ou outra, os ritos.

A obra de Burkert está dedicada a fechar essa brecha. Para ele o mito e o rito se iluminam mutuamente: o fato de tratar-se em um caso de uma narração paradigmática, e, em outro, de um ato paradigmático, não exclui em absoluta uma relação recíproca; permite-se uma relação na qual um e outro se complementem e apontem-se mutuamente com maior êxito. Nesse sentido, Burkert é certamente um herdeiro da Escola de Cambridge, mas distingue-se dessa, no final de contas, pela pretensão universalista de alcançar, mais além da constatação de determinadas relações locais entre a formação de mitos e ritos particulares, algumas estruturas fundamentais – e isso quer dizer, para ele, primogênitas - da convivência humana. Para Burkert, a mensagem do mito e do rito são a mesma, nas palavras de Nietzsche: “as energias terríveis – a que se chama mal – são os ciclopes arquitetos e engenheiros de caminhos da humanidade”. A ordem indispensável para toda convivência humana duradoura pressupõe não só uma pressão aos impulsos inatos da agressão e da destruição, mas também a liberação construtiva de suas energias. A violência não é apenas o oposto da ordem, mas seu pressuposto e sua força portadora. Certamente as perguntas centrais de Burkert – como pode a ordem integrar a violência sem sucumbir a ela? Como pode a civilização prescindir da barbárie? – se inspiraram nas teorias de Nietzsche e Freud, na antropologia e na etnologia dos últimos 50  anos, mas as aguçaram as catástrofes do nosso século. Cada um dos ensaios aqui reproduzidos trata de um determinado ponto crítico na vida das sociedades humanas – o sacrifício, a iniciação, a renovação, a purificação, a legitimação – e demonstra que sem o rito o mito não superaria a crise em questão, nem poderia sobreviver a sociedade ameaçada. Talvez, Burkert, desde um ponto de vista metodológico, tenha uma predileção decidida e quem sabe um pouco exagerada pelas origens (particularmente no paleolítico); mas sua admiração pelos ganhos da cultura grega, que soube unir o duradouro e o humano, desemboca em uma preocupação, sobretudo, prática e contemporânea: já é tarde para que aprendamos com os gregos?

Um encanto singular emana destes primeiros escritos de Burkert; mais de quarenta anos depois não perderam o frescor nem foram cientificamente superados, ainda que muitos dos temas que aqui se anunciam tenham sido aprofundados e refinados pelo próprio Burkert em publicações mais recentes. Esse efeito, quiçá, seja devido em parte a que os estudos clássicos alemães não tenham extraído ainda toda a consequências do descobrimento fundamental da relação recíproca entre rito e mito, que vem dando fruto nos estudos estadunidenses, franceses e suíços – muito mais receptivos, certamente ao influxo da antropologia estruturalista de Lévi-Strauss – ainda que seguramente também seja devido a que nestes escritos primeiros se manifeste, com maior claridade que nos anteriores e de forma mais detalhada uma tensão genuinamente literária. Por um lado, o tom destes ensaios é a todo momento distante e sombrio; o estilo é objetivo, a argumentação, sutil; o autor domina soberanamente todo o repertório das disciplinas auxiliares dos estudos clássicos – a arqueologia, a numismática, a epigrafia, a linguística indo-europeia – e as emprega com tato e precisão. Por outro lado, seus objetos prediletos são o sangue, a morte, a loucura, o asco , o terror. Uma vez ou outra, Burkert conduz o leitor desde o dia luminoso da humanidade grega até a horrenda noite das agressões desinibidas, de impulsos (auto)destrutivos que precedeu aquele dia, que ia assediando e ameaçando aniquilá-lo a cada instante. Da explosão apolínea de objetos dionisíacos que empreender Burkert, de sua contemplação científica dos perigos mais aterrorizantes, emana um efeito inquietante próprio e singular.

Referência

MOST, Glenn W. "Una exploración rigurosa de los orígenes selvajes: Walter Burkert sobre los mitos y ritos".  In: BURKERT, Walter. El Orígen selvaje: ritos de sacrifício y mito entre los griegos. Tradução de Luis Andrés Bredlow. Barcelona: Acantilado, 2011. [tradução do espanhol por Thiago Oliveira]