quinta-feira, 4 de abril de 2013

Altares Domésticos - Grécia Antiga e Hoje

por João Miguel Oliveira*
Tradução de Diego Calazans

As pessoas que cultuam os antigos deuses gregos hoje, em sua maioria, costumam fazê-lo sozinhas ou com suas famílias. Nada mais dos imensos festivais mantidos pela polis inteira. Muito pelo contrário – nossa definição de “imenso” foi a tal ponto encolhida que um ajuntamento de dez pessoas já é considerado impressionante.

Podemos ver essa mudança também nos altares. De assombrosas estruturas cercadas por um complexo de templos, tesouros e jardins, eles foram reduzidos a mesinhas, que podem ser usadas para outros propósitos, além do ritualístico. Ainda que isso possa parecer adequado para os menos ortodoxos entre nós, muitas vezes tenho me perguntado se não é de certa forma uma hipocrisia dizer que seguimos a Religião Grega Antiga (a ponto de celebrar festivais de colheita relacionados a climas completamente diferentes) e violar o que diversos pesquisadores têm considerado o mais essencial dos elementos de culto.

O altar (bomos) era de fato sempre o primeiro elemento de um templo. Era o lugar onde o primeiro sacrifício era feito e o templo e o temenos eram construídos ao redor dele, sem que o altar fosse movido, mesmo quando transformado de uma simples cova no chão em uma edificação completa. 

Mas a religião não estava limitada aos templos, festivais civis ou centros de culto. Havia um elemento presente na privacidade do oikos, da casa ou família. Nosso conhecimento desse elemento é incompleto, mas está claro que ele existiu. 

Muitos pesquisadores e devotos focam-se na polis porque esse é o elemento sobre o qual podemos encontrar mais evidências – as crenças populares não são expressas na literatura, ou são expressas apenas posteriormente, e os artefatos domésticos, diferente das grandes peças religiosas, não sobrevivem ao passar das eras. Por essa razão não sabemos como a maioria dos altares domésticos era, nem quem os usava ou o modo como eram usados. 

Pressupõe-se usualmente que os altares eram construídos em locais sagrados. As casas, porém, não eram temenoi. Todo tipo de atividade humana acontecia o tempo todo e isso conduz a um impasse – se os deuses são repelidos pelo miasma, como pode haver altares e rituais dentro da casa? 

Primeiro, há bastante evidência de que as casas podiam ser purificadas e que havia, até mesmo, especialistas nesse tipo de atividade. Além disso, na peça “O Fantasma”, do comediógrafo grego Menandro, aprendemos que qualquer um pode criar um espaço sagrado adotando comportamento ritual e que esse espaço continua sendo sagrado apenas pela duração do ritual.

Segundo, embora seja claro que para os grandes festivais e templos o miasma fosse uma preocupação relevante, não podemos dizer que os deuses em si são realmente repelidos pela poluição ritualística – quando devotos ao beber vinho fariam uma libação ao Daimon; no parto, Ártemis está presente; no sexo temos Afrodite; e mesmo Apolo, deus da purificação e da ilha sagrada de Delos onde as preocupações com o miasma foram levadas ao extremo, vinha ao auxílio de seu sacerdote após uma oração sem que nenhuma purificação estivesse envolvida. 

De fato, sabemos sobre diversos cultos que foram mantidos na privacidade da casa: Zeus Ktesios, a quem era oferecida a panspermia; o Dioskouroi a quem as pessoas ofereciam refeições (theoxenia) e cujos símbolos eram as ânforas; Zeus Herkeios com seu altar onde uma guirlanda viçosa era sempre encontrada; e mesmo a Herma, na entrada. E, claro, a sagrada Héstia, o coração que abençoava as refeições, transformando em evento sagrado cada ocasião em que a família e os convidados reuniam-se para comer.

Os altares tradicionais eram feitos de pedra, ossos, cinzas, tijolos, ou simplesmente terra. Por tradicionais, quero dizer os altares dos templos. Esses estavam usualmente do lado de fora e podiam estar ou não preparados para queimar sacrifícios e podiam ou não ser elevados. 

Dos altares domésticos temos menos exemplos e descrições. Sabemos que eles ficavam comumente no pátio e jardins e eram provavelmente parte de um santuário, mas eles eram tão variados quanto as pessoas que os mantinham. Alguns eram pequenos buracos na parede com uma imagem. Muitos eram feitos de pedra ou terracota e eram de tal forma que podiam ser transportados, para que as pessoas pudessem levar seu altar com elas quando se mudassem. A maioria não era decorada, embora tenham sido encontrados alguns com o nome do deus ao qual eram dedicados, ou com decoração embutida. Outros não ficavam em exposição e eram feitos do que quer que a pessoa tivesse disponível e duravam apenas o tempo de execução do ritual.

Há muitas semelhanças com os altares dos templos, assim como com as hermas. As principais diferenças eram o tamanho (muito menores), o fato de que muitos eram temporários e podiam ser movidos, e a existência de altares portáteis.

Sabemos que esses altares eram comuns, porque, mesmo tendo sido encontrados somente poucos, eles são muitas vezes referenciados na literatura e Sócrates, em Eutidemo, chega a dizer “I too have altars and household hiera and patroia and artefacts of the same type as other Athenians”**. De fato, eles eram tão comuns que Platão os critica em seu diálogo Leis. 

O que não sabemos o bastante é como eles eram usados. Era o patriarca que costumava conduzir os rituais que poderiam estar relacionados a mudanças na composição e estrutura da família (tais como casamento, nascimento, maturidade e morte) ou que deveriam manter um relacionamento com específicos deuses domésticos e familiares. 

Os altares eram usados tanto para rituais regulares quanto pontuais e entre os itens comuns que você poderia encontrar em um altar estavam incensos, bolos, vinho, roupas e guirlandas. Algumas residências possuíam diversos altares, e Xenofonte nos diz que alguns eram usados para sacrifícios frequentes, enquanto outros eram reservados a festivais especiais. 

A evidência dos cultos domésticos contrasta com a dos cultos em santuários e templos em termos de variedade e escala e isso reflete as necessidades religiosas pessoais e os motivos de cada família e pessoa. De fato, isso fornece um argumento em favor do uso de altares domésticos e mesmo da criação de versões pessoais (e mais significativas) de altares e festivais que eu penso que todos nós podemos aprender.

Referencial Bibliográfico

- Fontes Primárias
Aristófanes, As Vespas
Platão, Leis
Platão, Eutidemo
Xenofonte, Econômico

-  Fontes Secundárias
ADKINS L, ;ADKINS, R.A. Handbook to Life in Ancient Greece. Facts on File. 2005

BURKET, W. Greek Religion. Harvard University Press. 1985 [Em português: Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. de Walter Burkert. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993].

NILSSON, M.P. Greek Folk Religion. University of Pennsylvania Press. 1972

RAWSON, B. 2011. A Companion to Families in the Greek and Roman Worlds. Wiley-Blackwell, 2011.

ROBINSON, D.M.. A Preliminary Report on the Excavations at Olynthos. American Journal of Archaeology. 1929.

THOMPSON, D.B.; GRISWOLD, R. E. Garden Lore of Ancient Athens. American School of Classical Studies. 1963

THOMPSON, D.B. An Ancient Shopping Center: the athenian agora. American School of Classical Studies at Athens. 1993.



Notas do Tradutor
* O presente artigo foi extraído da edição de inverno/ 12 newsletter do grupo Neokoroi. Clique aqui para acessar a página da revista.

**Mantivemos a tradução, do grego para o inglês, dada pelo autor a essa passagem e acrescentamos uma possibilidade em português: “Eu também tenho altares e bens sagrados domésticos e pátrios, e artefatos, como os que possuem os outros atenienses”.


Como Citar este artigo?
OLIVEIRA, João Miguel. Altares Domésticos. Tradução de Diego Calazans. Diretório de Tradutores Reconstrucionismo Helênico no Brasil. 2013.


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