sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Poseidon - Introdução

Fragmento da página dedicada a Poseidon no site Theoi.
Tradução de Janilson Gomes
para ler o conteúdo na íntegra e em inglês Clique Aqui


Poseidon é deus do mar, rios, inundação e seca, terremotos e cavalos. Seu nome parece estar conectado com potos, pontos e potamos, consoante ele ser o deus do elemento fluído. (Müller, Proleg. p. 290.) Filho de Cronos e Reia (daí ele ser chamado Kronios e, por poetas latinos, Saturnius, Pind. Ol. vi. 48; Virg. Aen. v. 799.), e portanto irmão de Zeus, Hades, Hera, Héstia e Deméter, foi determinado governar o mar. (Hom. Il. xiv. 156, xv. 187, &c.; Hes. Theog, 456.) Como seus irmãos e irmãs, ele foi, após o nascimento, engolido pelo seu pai Cronos, porém vomitado de volta. (Apollod. i. 1. § 5, 2. § 1.). De acordo com outros relatos ele foi ocultado por Reia ao nascer junto a um rebanho de cordeiros, e sua mãe fingiu ter parido um jovem cavalo, o qual entregou a Cronos para ser devorado. Uma fonte no bairro de Mantineia, onde acredita-se ter esse evento ocorrido, tem seu nome derivado de “fonte dos cordeiros” ou Arne. (Paus. viii. 8. § 2.) De acordo com Tzetzes (ad Lycoph. 644) a ama de Poseidon chamava-se Arne; quando Cornos procurou por seu filho, Arne mentiu, declarando não saber onde ele estava, e daí credita-se a ela o nome da cidade. Ainda por outros relatos, foi o deus educado pelos telquines, a pedido de Reia. (Diod. v. 55.)

Nos mais antigos poemas, Poseidon é descrito, de fato, como igual a Zeus em dignidade, porém mais fraco. (Hom. Il. viii. 210, xv. 165, 186, 209; comp. xiii. 355, Od. xiii. 148.). Por isso encontramos sua ira quando Zeus, com palavras de altivez, tenta intimidá-lo; Ou melhor, ele chegou a ameaçar seu irmão maior, e uma vez conspirou com Hera e Atena para acorrentá-lo (Hom. Il. xv. 176, &c., 212, &c.; comp. i. 400.); ainda assim, por outro lado, também encontramos seu aspecto complacente e submisso a Zeus (viii. 440).

O palácio de Poseidon era nas profundezas do mar próximo a Aegea na Eubeia (xiii. 21; Od. v. 381), onde ele mantém seus cavalos com cascos de ouro e crinas de bronze. Com esses animais ele comanda uma carruagem através das ondas do mar, que se tornam calmas quando ele se aproxima, e os monstros das profundezas o reconhecem e vem brincar com seu veículo.  (Il. xiii. 27, comp. Virg. Aen. v. 817, &c., i. 147; Apollon. Rhod. iii. 1240, &c.) Geralmente ele mesmo coloca os cavalos em sua carruagem, porém em outros momentos ele é assistido por Anfitrite (Apollon. Rhod. i. 1158, iv. 1325; Eurip.Androm. 1011; Virg. Aen. v. 817.). Ainda que habitasse o mar, ele continuava a aparecer no Olimpo durante as assembleias dos deuses (Hom. II. viii. 440, xiii. 44, 352, xv. 161, 190, xx. 13.)

Poseidon, juntamente com Apolo, construíram para Laomedonte a muralha de Tróia (vii. 452; Eurip. Androm.1014), daí Tróia ser chamada Neptunia Pergama (Netuno e Poseidon sendo identificados, Ov. Fast. i. 525, Heroid. iii. 151; comp. Virg. Aen. vi. 810.) Embora ele tenha sido de outras maneiras gentil aos grego, ficou enciumado ao ver a muralha que eles construíram ao redor de seus navios, e lamentou a ingloriosa forma com a qual as muralhas que ele próprio ergueu acabaram caindo nas mãos dos gregos. (Hom. Il. xii. 17, 28, &c.) Quando Poseidon e Apollo terminaram de construir a muralha de Troia, Laomedonte recusou-se a recompensá-los da forma que estava estipulado, e ainda os demitiu com ameaças (xxi. 443); ao que Poseidon enviou um monstro marinho, que estava prestes a devorar a filha de Laomedonte, quando foi morto por Herácles. 

Por essa razão, Poseidon, assim como Hera, nutriam um ódio implacável contra os troianos, do qual nem mesmo Eneias foi poupado (Hom. Il. xx. 293, &c.; comp. Virg. Aen. v. 810; Il. xxi. 459, xxiv. 26, xx. 312, &c.). O deus do mar tomou postura ativa na guerra contra troia, lutando ao lado dos gregos, algumas vezes testemunhando a disputa como espectador dos montes da Trácia, outras vezes interferindo pessoalmente assumindo a aparência de um herói mortal e encorajando os gregos, enquanto Zeus favorecia os troianos. (Il. xiii. 12, &c., 44, &c., 209, 351, 357, 677, xiv. 136, 510.) Quando Zeus permitiu que os deuses assistissem qual lado quisessem Poseidon juntou-se aos gregos, tomando parte na guerra e fazendo a terra tremer; ele opôs-se a Apolo, quem, contudo, não gostava de estar lutando contra seu tio. (Il. xx. 23, 34, 57, 67, xxi. 436, &c.) Na Odisseia, Poseidon aparece como hostil a Odisseu, impedindo-o de voltar para casa como castigo por ter cegado Polifemo, filho de Poseidon com a ninfa Teosa.  (Hom. Od. i. 20, 68, v. 286, &c., 366, &c., 423, xi. 101, &e., xiii. 125; Ov.Trist. i. 2. 9.)

Como governador do mar, ele é descrito tanto causando tempestades como garantido uma viagem tranquila e salvando aqueles que estavam em perigo. Toda as outras divindades marinhas obedeciam a ele. Uma vez que o mar circunda e contem a terra, ele é descrito também como o deus que segura a terra (gaiêochos), e aquele que tem o poder de balançá-la (enosichtôn, kinêtêr gás).

Ele era ainda considerado o criador dos cavalos, e acredita-se que ele tenha ensinado aos homens a arte de dominar esses animais com a rédea, e ser o protetor e criador das corridas de cavalos. (Hom. Il. xxiii. 307, 584; Pind. Pyth. vi.50 ; Soph. Oed. Col. 712, &c.) Por isso ele também é representado no dorso de um cavalo, ou comandando uma carruagem puxada por dois ou quatros equinos, sendo designado nessas ocasiões pelo epíteto hippios, ippeios ou hippios anax.  (Paus. i. 30. § 4, viii. 25. § 5, vi. 20. § 8, viii. 37. § 7 ; Eurip.Phoen. 1707; comp. Liv. i. 9, onde ele é chamado equester.) Como consequência da sua conexão com os cavalos, ele era considerado amigo dos cocheiros (Pind. Ol. i. 63, &c.; Tzetz. ad Lyc. 156), e ele mesmo transformou-se em um garanhão, com fim de enganar Deméter. 

A tradição comum sobre Poseidon ser o criador dos cavalos é a seguinte: quando Poseidon e Atena disputaram qual deles iria nomear a capital da Ática, os deuses decidiram que deveria ser aquele que desse aos homens o presente mais útil. Poseidon criou o cavalo e Atena criou a oliveira, de tal forma que a capital da Ática passou a se chamar Atenas. (Serv. ad Virg. Georg. i. 12.) Já de acordo com outros, Poseidon não criou o animal na Ática, mas sim na Tessália, onde ele também deu a Peleu seus famosos cavalos. (Lucan, Phars. vi. 396, &c.; Hom. Il. xxiii. 277; Apollod. iii. 13. § 5.)

O símbolo do poder de Poseidon era um tridente, ou uma lança de três pontas, que ele usava para destruir rochas, convocar ou dissipar tempestades, tremer a terra e outras coisas mais. Heródoto (ii. 50, iv. 188) atesta que o nome e o culto a Poseidon foi importado pelos gregos da Líbia, mas que provavelmente ele era uma divindade de origem pelasgas, e originalmente uma personificação do poder fertilizador da água, daí a transição para deus do mar não foi difícil. 

É notável como as lendas desse Deus estão ligadas com a disputa pela posse de certos países com outros Deuses. Aquela onde ele, na disputa por Ática, finca seu tridente no chão da acrópole, fazendo surgir uma fonte de água do mar e inundando a cidade, após ter perdido-a para Atena que a recebeu dos deuses após ter criado a oliveira. (Herod. viii. 55; Apollod. iii. 14. § 1 ; Paus. i. 24. § 3, &c.; Hygin. Fab. 164.). Também com Atena ele disputou a posse de Trezena, e seguindo ordens de Zeus dividiu com ela a cidade. (Paus. ii. 30. § 6). Com Hélio ele disputou a soberania sobre Coríntio, ficando com ele a cidade e o istmo, e indo a acrópole para Hélio. (ii. 1. § 6.) Disputou a posse da Argólida com Hera, sendo decido por Inácio, Cefiso e Astério que a posse iria para a Deusa. Como represália, Poseidon fez os rios desses deuses-rios secarem. (ii. 15. § 5, 22. § 5; Apollod. ii. 1. § 4.) Com Zeus, por último ele disputou Egina,e Naxos com Dionísio. (Plut. Sympos. ix. 6.) Por um tempo Delfos o pertenceu, juntamente à Ge, mas Apolo o deu Caularia como compensação. (Paus. ii. 33. § 2, x. 5. § 3; Apollon. Rhod. iii. 1243, with the Schol.)

Outras lendas também merecem ser mencionadas. Ao lado de Zeus ele lutou contra Cronos e os titãs. (Apollod. i. 6. § 2; Paus. i. 2. § 4.) Além disso esmagou os Centauros quando perseguiram Herácles, sob uma montanha na Leucócia, a ilha das Sereias. (Apollod. ii. 5. § 4.) Junto com Zeus ele cortejou a mão de Tétis, mas ele se retirou quando Têmis profetizou que o filho de Tétis seria mais poderoso que seu pai. (Apollod. iii. 13. § 5; Tzetz. ad Lyc. 178.) Quando Ares foi capturado na rede de Hefesto, foi Poseidon que pediu por sua soltura (Hom.Od. viii. 344, &c.) porém o Deus do Mar levou Ares à julgamento no Aeropago, pelo Deus da Guerra ter matado seu filho Halirrhothius (Apollod. iii. 14. § 2.). A pedido de Minos, rei de Creta Poseidon fez surgir do mar um boi, que foi prometido a sacrifício pelo rei; porém Minos traiçoeiramente escondeu o animal entre um rebanho de carneiros, o Deus puniu Minos fazendo com que sua filha Pasífae se apaixonasse pelo boi. (Apollod. iii. § 3, &c.) Periclimeno, que era ou um filho ou um neto de Poseidon, recebeu dele o poder de assumir várias formas. (i. 9. § 9, iii. 6. § 8.).

Poseidon era casado com Anfitrite, com quem ele teve três filhos, Tritão, Rode e Benthesicyme (Hes. Theog. 930; Apollod. i. 4. § 6, iii. 15. § 4); porém ele possuía além desses um vasto número de filhos com outras divindades e mortais.

Ele é mencionado por uma variedade de sobrenomes, tanto em alusão às lendas que contam , quanto à sua natureza de Deus do mar. Seu culto era presente em toda a Grécia e sul da Itália, sendo especialmente reverenciado no Peloponeso (onde é chamado oikêtêrion Poseidônos) e nas cidades costeiras de Ionic. Os sacrifícios a ele oferecidos geralmente eram bois brancos e pretos (Hom. Od. iii. 6, Il. xx. 404; Pind. Ol. xiii. 98; Virg. Aen. v. 237); ainda que javalis e carneiros selvagens também fossem sacrificados. (Hom. Od. xi. 130, &c., xxiii. 277; Virg. Aen. iii. 119.) Na Argólida cavalos com cabresto eram atirados da fonte Deine, em forma de sacrifício (Paus. viii. 7. § 2), e corridas de carruagens e cavalos eram celebradas em sua honra no istmo de Coríntio (Pind. Nem. v. 66, &c.). A Panionia, ou o festival de todos os inoanos próximo a Mycale, era celebrado em honra a Poseidon. (Herod. i. 148.)

Na arte Poseidon pode ser facilmente reconhecido pelos seus atributos, o golfinho, o cavalo ou o tridente (Paus. x. 36. § 4) e ele era frequentemente representado em grupo com Anfitrite, nereiádes, golfinhos, os Dióscuros, Palemon, Pégaso, Belerofonte, Tálassa, Ino e Galeno (Paus. ii. 1. § 7.). Sua figura não apresenta a calma majestosa que caracteriza seu irmão Zeus. As estatuas, assim como o mar, apresentam ora o Deus em uma violenta agitação, ora em repouso. 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Politeísmo Redux

Nota do Editor: O texto a seguir apresenta uma breve síntese de um debate recente que se desenvolveu na comunidade "pagã" anglófona que teve como foco especulações sobre um saber teológico pagão. Entre posições e controvérsias Johb Beckett, ainda que não seja helênico, oferece uma contribuição para esse debate através de uma abordagem bastante similar àquela atualmente usada pelo reconstrucionismo helênico ao entender os deuses como agentes, seres individuais e potências vivas - não como elementos da natureza (ainda que se relacionem com ele), ou macroestruturas abstratas. A maneira de escrever é bastante despojada e em certo sentido, telegráfica; leituras indicadas e demais componentes que integram o debate também podem ser acompanhados com os links em língua inglesa. A todas e todos, uma boa leitura.


POLITEÍSMO REDUX

por John Beckett
tradução de Josie Machado.
Clique aqui para ler o texto em inglês

Eu gastei a tarde de ontem trabalhando em um comentário sobre como o sucesso de minha abordagem "temas não objetivos" significa que eu agora estou definindo objetivos para 2014. Mas antes de conseguir terminá-lo, houve uma onda de comentários sobre teologia politeísta e sinto a necessidade de responder.

A maior parte desta discussão é controversa e tornou-se pessoal. Se você quiser entendê-la, leia esse comentários escrito por Morpheus Ravenna, esse por Rhyd Wildermuth, esse por Alison Lilly, esse por Traci Laird, esse por Anomalous Thracian, e o mais recente comentário de Morpheus Ravenna. Existem outros que não linkei e os que estão a caminho. São leituras instigantes se você dispor de tempo para apreciá-las.

Eu considero todas essas pessoas amigos de uma forma ou de outra. Lamento que as coisas tenham se tornado pessoais, mas é bom termos este debate. O Paganismo ainda é uma religião nova e nós ainda tentamos descobrir nossa teologia... ou melhor, nossas teologias. Melhor trabalharmos esse debate com participação em massa pela internet do que 300 bispos (de 1800 convidados) escondidos em algum lugar, tentando decidir o que irá tornar-se a ortodoxia para os próximos dois milênios.

A seguir, minha opinião sobre o assunto.

Há muitas opiniões sobre a natureza e substância dos Deuses. Qual é a correta? Tudo o que podemos dizer com certeza é "nós não sabemos". E isso significa que a única coisas que é errada - a única coisa que me fará subir em uma mesa e gritar "não, isso não está certo!" - é não deixar espaço para mistério. Por mistério, quero dizer incerteza, não o conhecimento subjetivo que vem através de experiências místicas.... apesar de qualquer religião que não deixe espaço para esse tipo de mistério seja inútil para mim, mesmo que não seja objetivamente errado.

Esta é a primeira regra da teologia: Nós não sabemos. Não existe regra  número dois. Isso não significa que a teologia seja inútil e que todas as respostas sejam igualmente úteis. Significa que praticar teologia requer humildade e abertura... e uma boa dose de curiosidade também ajuda.

O que há de errado subjetivamente (i.e. - Estou convencido de que não é certo mas, ler regra #1 acima) é tentar forçar os Deuses em um modelo naturalista que assume que os Deuses de nossos antepassados não possam existir realmente, distintos, seres individuais. Parece que toda vez que discuto minhas relações com os Deuses - Especialmente quando Eles querem que eu faça algo - alguém me responde com "mas você sabe que tudo isso está dentro da sua cabeça, certo?"  Ou "Deuses são mitos e metáforas." Ou ainda, "Você está tornando humano algo que não é humano!"Essas teorias são todas válidas e eu as respeito, embora não concorde com elas.

O que eu acho preocupante é a noção subjacente de que desde a Ciência (o árbitro da realidade na sociedade ocidental contemporânea) não tem nenhuma explicação para Deuses como realidade, distintos e seres individuais não podem existir, e achar que o que Eles fazem é auto-ilusão. Acho irônico que algumas das mesmas pessoas que criticam duramente politeístas por lidar com os deuses em forma humana comprem a ideia (subconscientemente, se não conscientemente) que a cosmovisão humana atualmente popular é sem dúvida correta: que, se nós, humanos, não termos todas as respostas, pelo menos temos a verdadeira maneira de encontrar todas as respostas. (Eu sou engenheiro. Eu amo ciência. Ela nos trouxe descobertas surpreendentes e melhorou nossos padrões de vida. E também nos trouxe resíduos nucleares, armas químicas e (FRANKING). A ciência é uma ótima ferramenta, uma filosofia ruim e uma religião prejudicial.)

Você cultua Poseidon ou cultua o Mar? Ao longe ouço Poseidon rugindo como Davy Jones em Piratas do Caribe. "EU SOU O MAR!" Talvez. Mas Poseidon tem uma história, várias histórias, uma personalidade. O Mar tem outras. Poseidon ouve orações e aceita ofertas - ou não, como Ele preferir. O mar simplesmente é. Ambos são maravilhosos e poderosos, e eu os admiro. Me parece razoável adorar ambos. Mas por Poseidon ter qualidades humanas (que não é o mesmo que acreditar que "os deuses são como os seres humanos só que maiores") posso me relacionar com ele de forma diferente de como eu posso me relacionar com o mar. A religião baseada em relacionamentos mutuamente benéficos com Divindades com qualidades semelhantes às humanas necessita de um olhar e sentimento diferentes da religião baseada no benefício mutuo entre o mundo Natural. Mas existe claramente um espaço para ambos na Grande Tenda do Paganismo, bem como espaço para ambos no canto do politeísmo.

Parece haver um argumento desnecessário sobre o que constitui um politeísta. Um politeísta é alguém que tem conhecimento de múltiplos Deuses. Eu não vejo necessidade de refinar mais que isso. Se você disser "eu sou um politeísta: Eu adoro a terra, o céu e o mar", então eu não tenho nenhum argumento contra você, mesmo que sua abordagem não seja suficiente para mim.

Alison Lilly reclama que algumas pessoas acusam de ateísmo por ter tal abordagem. Eu acho que sua queixa é válida. Há um precedente histórico para este ponto de vista - alguns acusaram os primeiros cristãos de ateísmo, pois eles negaram a realidade dos deuses greco-romanos. Mas essa visão era e continua errada. Ateísmo é a negação de todos os deuses, não a negação de seus deuses.

Chega com as nuances e incertezas do politeísmo. Aqui está o que eu acredito. Eu acredito que os deuses são reais, distintos, seres individuais pois é assim que eu tive experiências com Eles. Minha experiência com Isis é diferente da minha experiência com Cernunnos e diferente da experiência com Morrigan e assim vai. E todas elas foram diferentes das minhas experiências de meus próprios pensamentos e sentimentos.

Quanto mais eu conheço os Deuses como indivíduos - mais eu oro, adoro, medito, faço ofertas e principalmente mais ouço-Os - mais sua realidade é evidente para mim e mais significante se torna minha vida. O conhecimento subjetivo que ganho supera em muito minha falta de conhecimento objetivo.

E aqueles que têm uma visão psicológica dos Deuses, ou uma visão metafórica, o uma visão naturalista? Eu sou um Universalista Unitário, bem como um pagão e um druida - Eu vou julgar suas crenças baseadas em quão bem eles te motivam a viver uma vida significativa, compassiva e útil, não sobre a forma como eles combinam com as minhas crenças. Mas o fatos de suas crenças serem úteis para você não significa que eu acho seus argumentos persuasivos. A ideia que eu tenho visto sendo enfatizada em todos os comentários recentes é que os Deuses têm agências. Eles têm os seus próprios pensamentos, próprias ideias, sua própria vontade e talvez mais importante, os seus próprios interesses e áreas de responsabilidade. Isto é importante. A ideia de que os deuses estão aqui "por nós" - seja como terapeutas ou treinadores ou pais alados divinos - é decididamente inútil. Sim, Deuses as vezes chamam um humano em seu serviço - eu experimentei tal chamada. Mas o meu sacerdócio não é sobre mim, e sim sobre eles. Trata-se de transmitir suas mensagens e fazer o seu trabalho.

Honrar os Deuses como seres reais, distintos e individuais me lembra que, em última análise, a vida não é tudo sobre mim. Existe algo maior, mais forte e mais sábio, e minha vida é melhor quando ligada à alguma coisa - ligada à Eles. Embora eu seja responsável pela minha própria vida, faço um trabalho melhor e sirvo à um bem maior, quando trabalho com Eles.

Eu tenho que saber se talvez essa enxurrada de comentários politeológicos não seja simplesmente casos pagãos centrados em divindade ou centrados na natureza mal-entendidos entre si. Minha esperança é que a troca tenha informado e esclarecido tudo, e que nossa compreensão dos Deuses e do outro tenham crescido. Agora, se vocês me dão licença, é hora da orações da noite.

Hefesto: Introdução

do site Theoi, com tradução de Janilson Gomes.
Para ler o texto em inglês clique aqui.




Hefesto, o deus do fogo, era, de acordo com Homero, filho de Zeus e Hera (Il. i. 578, xiv. 338, xviii. 396, xxi. 332, Od. Viii. 312.) Antigas tradições afirmam que ele não tinha pai, e que Hera o concebeu sem Zeus, por ciúmes à conceição de Atena por Zeus, sem ela. (Apollod. i. 3. parágrafo 5; Hygin. Fab. Praef.) No entanto essa versão é contrária a história comum na qual Hefesto cindiu a cabeça de Zeus, e o ajudou no nascimento de Atena. Uma interpretação mais recente da antiga tradição diz que Hefesto pulou da coxa de Hera, e que sua filiação foi mantida em segredo. Com intuito de descobrir seu parentesco ele recorreu a um estratagema. Hefesto construiu uma cadeira na qual quem sentasse ficaria preso, e assim aprisionou Hera, e se recusou a libertá-la até que ela dissesse quem eram seus pais. (Serv. ad. Aen. vii. 454, Eclog. iv. 62.) Para mais informações sobre sua origem: Cícero (de Nat. Deor. iii. 22), Pausanias (viii. 53. parágrafo 2º). E Estathius (ad Hom. p. 987).

Hefesto é o deus do fogo, especialmente o fogo que se manifesta como um poder da natureza nas zonas vulcânicas, e na medida em que é indispensável para a arte e manufaturas; daí que o fogo é chamado o fôlego de Hefesto, e o nome do deus era usado pelos poetas Gregos e Romanos como sinônimo para fogo. Assim como as chamas surgem de uma pequena faísca, também nasceu o deus do fogo delicado e enfraquecido. Razão pela qual sua mãe nutria por ele tão profunda antipatia que quis se livrar dele jogando-o do Olimpo. Porém as divindades marinhas, Tétis e Eurínome, o acolheram, e com elas ele habitou por nove anos em uma gruta, cercado por Oceano, fazendo para elas uma variedades de ornamentos. (Hom. Il. xviii. 394, &c.) Foi durante esse período, de acordo com alguns relatos, que ele fez a cadeira na qual puniu sua mãe por sua carência de afeto, e da qual não a libertou até que ser convencido por Dionísio. (Paus. i. 20. parágrafo 2; Hygin. Fab. 166.)

Ainda que Hefesto se lembrasse da crueldade de sua mãe, ele era gentil e obediente a ela, ou melhor, uma vez ela estava discutindo com Zeus e ele tomou seu partido na discussão, e assim ofendeu tanto seu pai que ele o agarrou pela perna e o atirou do Olimpo. Hefesto passou um dia inteiro caindo, e ao anoitecer chegou a ilha de Lemnos, onde foi gentilmente recebido pelos Síntios. (Hom. Il. i. 590, &c. Val. Flacc. ii. 8.5; Apollod. i. 3. parágrafo 5, que, entretanto, confunde as duas ocasiões onde Hefesto foi atirado do Olimpo.) Antigos escritores atribuem sua coxeadura a essa segunda queda, enquanto Homero o atribui desde o nascimento.

Após sua segunda queda ele retornou ao Olimpo, e atuou como mediador entre os pais. (Il i. 585.) Nessa ocasião ele ofereceu uma taça de néctar para sua mãe e para os outros deuses, que irromperam em uma risada sem moderação ao vê-lo mancando apressado pelo Olimpo de um deus a outro, pois ele era feio e lento, e, devido a fraqueza de suas pernas, quando andava era sustentado por suportes artificiais, habilmente feitos de ouro. (Il. xviii. 410, &c., Od. viii. 311, 330.) Seu pescoço e seu peito, entretanto, eram fortes e musculosos. (Il. xviii. 415, xx. 36.)

No Olimpo, Hefesto possuía seu próprio palácio, imperecível e brilhante como as estrelas: nele estava sua oficina, com a bigorna e vinte foles, que trabalhavam espontaneamente ao seu comando. (Il. xvii. 370, &c.) Foi lá que ele fez todos seus belos e maravilhosos trabalhos, utensílios e armas, para deuses e para homens. Os antigos poetas e mitografos são abundantes em passagens descrevendo trabalhos de requintado artesanato que foram manufaturados por Hefesto. Em antigos relatos, os ciclopes Brontes, Estéropes, Arges e outros eram seus operários e servos e sua oficina não é mais representada no Olimpo e sim no interior de alguma ilha vulcânica. (Virg. Aen. viii. 416, &c)

A esposa de Hefesto também vivia em seu palácio: na Ilíada ela é chamada Carite, na Odisseia Afrodite (Il. xviii. 382, Od. viii. 270), e na Teogonia (945) seu nome é Aglaia, a mais jovem das Charites. A historia da infidelidade de Afrodite para com seu marido, e a maneira na qual foi surpreendida por ele é requintadamente descrita na Odisseia (Od. viii. 266-358.). O poema homérico não menciona nenhum descendente de Hefesto, porém em antigos escritos o número de filhos seus era considerável. Na guerra de Troia ele esteve ao lado dos Gregos, porém também era cultuado em Tróia, e em uma ocasião salvou um troiano de ser morto por Diomedes. (Il. v. 9 &c.)

Seu lugar favorito na terra era a ilha de Lemnos, onde ele gostava de viver entre os Síntios (Od. viii. 283, &c., Il. i. 593; Ov Fast. viii. 82); porém outras ilhas vulcânicas também, como Lípara, Hiera, Imbros (hoje Gökçeada) e Sicília eram chamadas de suas moradas e oficinas. (Apollon. Rhod iii. 41; Callim. Hymn. in Dian. 47; Serv. ad Aen. viii. 416; Strab. p. 275; Plin. H. N. iii. 9; Val. Flacc. ii. 96.)

Hefesto é para os deuses como Atena é para as deusas, por, como ela, dar a artistas mortais habilidade, e, junto com ela, foi atribuído a ele o ensinamento aos homens das artes que embelezam e enfeitam a vida. (Od. vi. 233, xxiii. 160. Hymn. in Vaulc. 2. &c.) Porém ele não possuía o caráter sublime de Atena. Em Atenas os dois partilhavam templos e festivais em comum. (Ver: Dict of Ant. s. v.Hêphaisteia, Chalkeia.) A ambos eram atribuídos poderes curativos, e a terra de Lêmnian, no lugar em que ele caiu, curava a loucura, picadas e cobras e hemorragias, e os sacerdotes do Deus sabiam como curar ferimentos provocados por serpentes. (Philostr. Heroic. v. 2; Eustath. ad Hom. p. 330; Dict. Cret. ii. 14.)

Os epítetos e sobrenomes pelos quais Hefesto era designado pelos poetas geralmente fazem alusão a sua habilidade com artes plásticas, a sua compleição física e aleijamento.

No templo de Atena Khalkioikos em Esparta, ele era representado no ato de libertar sua mãe (Paus. iii. 17. § 3). No peito de Cípselo, dando a Tétis a armadura de Aquiles (v. 19. Parágrafo 2); e em Atenas havia uma famosa estátua feita por Alcamanes, na qual sua deformação era sutilmente indicada. (Cic. de Nat. Deor. i. 30; Val. Max. viii. 11. § 3.). Os gregos frequentemente colocavam uma pequena estátua em formato de anão próximo à lareira, sendo estas representações as mais antigas. (Herod. iii. 37; Aristoph. Av. 436; Callim. Hymnn. in Dian. 60.). Durante o melhor período da arte grega, ele foi representado como um vigoroso homem barbudo, e caracterizado pelo seu martelo ou outro tipo de instrumento, boné oval, e chiton deixando amostra seu ombro e braço direito.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Uma exploração rigorosa das origens selvagens: Walter Burkert sobre mitos e ritos

Uma exploração rigorosa das origens selvagens: 
Walter Burkert sobre mitos e ritos
(por Glenn W. Most)

O homem, em suas faculdades mais elevadas e mais nobres, é todo ele natureza, e traz em si a inquietante duplicidade desta. Suas capacidades terríveis, consideradas inumanas, por acaso são o único solo fértil onde pode brotar qualquer humanidade nas emoções, feitos e nas obras.  Assim, os gregos, os homens mais humanos dos tempos antigos, mostram um ar de crueldade, um afã de destruição como os de um tigre
(F. Nietzsche – Cinco prólogos  a cinco livros não escritos, 5 – A Competição de Homero)

Os mitos gregos não são inquietantes apenas para nós;  já entre os próprios gregos o eram e não apenas um mito particular que narrava a emasculação ou o despedaçamento de um deus o a loucura e atrocidades de um herói, mas o mito enquanto tal, como explicação que dá sentido às condições da vida humana mediante a narração das façanhas e sofrimentos de personagens sobre-humanos ou demasiado humanos. Desde Homero, todo poeta grego tenha que enfrentar a árdua tarefa de refazer cada vez para um público novo os relatos herdados, as vezes enigmáticos – por causa de uma única mulher uma cidade inteira foi assediada por dez anos e finalmente arrasada; um rei assassinou seu pai e casou-se com sua mãe -, mas sem reproduzi-los asperamente, e tampouco sem alterá-los tão radicalmente que desdissessem a tradição e resultassem pouco plausíveis. Todo historiado que não quisesse limitar-se a sua própria época tinha que ocupar-se das embaraçosas contradições e inverossimilhança dos mitos que, para os tempos mais antigos, eram a única fonte que conheciam. Era preciso reunir, selecionar, transformar e combiná-los. Por mais assombroso que pareça, quase ninguém ousou prescindir-se deles e, mesmo quando Éforo excluiu de sua História Universal os primitivos tempos míticos, sinalizando a impossibilidade de obter conhecimento científico preciso deles, todavia, aceita como ponto de partida seguro as migrações dos filhos de Heracles. Todo filósofo, por mais convencido que estivesse da inferioridade do pensamento mítico, tinha que enfrentar os mitos herdados, fosse refutando-os minuciosamente (entre outras razões, com o fim abrir espaço para os mitos que eles mesmo inventava para o casão, fosse demonstrando cientificamente que suas próprias verdades haviam encontrado já nas lendas mais antigas, uma expressão velada, mas recuperável em sua totalidade mediante a exegese alegórica. No final das contas, nenhuma escola filosófica  antiga podia prescindir da interpretação alegórica, procedimento justificado, inclusive, por Aristóteles e praticado por Lucrécio. 

A plausibilidade poética, a redução histórica e a exegese filosófica foram, por assim dizer, três soluções de emergência mediante as quais os gregos trataram de dominar seus mitos - imprescindíveis, ainda que insondáveis. Se a dificuldade de um desafio se mede pelos esforços repetidos que suscitou, então aqui o surpreendente não é tanto que os mitos gregos sofreram perpetuamente ataques e reinterpretações, mas sim que se mantiveram vigentes durante tanto tempo. Evidentemente a ancoragem na religião do Estado e a educação básica lhes conservava certa proteção, mas por que tantas âncoras persistiram com o tempo e não foram perdendo-se? Sem dúvida, justamente as três  estratégias citadas contribuíram também para assegurar a sobrevivência dos mitos, não só ao longo da acidentada evolução da cultura grega, muito mais de seu acaso: como manancial inesgotável de inspiração literária, como monumento duradouro das épocas mais antigas da história da humanidade, como alusão misteriosa a ensinamentos físicos e morais sublimes, os mitos conseguiram sobreviver a Idade Média e salvaram-se para a Idade Moderna. Tão exitosa foi a salvação que nem mesmo a independência das literaturas nacionais , o desenvolvimento das novas ciências históricas e das novas filosofias na primeira modernidade conseguiram romper o feitiço dos mitos gregos. No século XVIII sucumbiram as formas tradicionais da poesia barroca e da alegoria, mas os mitos já havia muito não necessitavam de tais procedimentos, que em princípio, deveria salvá-los.  Seguiam vivos e gozando de boa saúde. Logo, no século XIX, quase todo poeta romântico podia lançar mão dos mitos clássicos, enquanto a mitologia – que de aí em diante presumia-se científica – dos incipientes estudos clássicos o velho everemismo lançava tardias e extravagantes flores às teorias das lendas tribais de K. O. Müller, como nas diversas variantes da velha alegoresis filosófica em “Simbolismo e Mitologia dos povos antigos” de Creuzer e na “Mitologia Comparada” de Max Müller. 

De fato, o procedimento de todas essas estratégias de interceptação consistia de desacoplar o mito de seu contexto genético e funcional primitivo para integrá-lo aos sistemas literários, históricos e filosóficos europeus. Mas, nenhuma dessas formas de interpretação admitiu isso abertamente; afirmava-se uma vez ou outra que se havia restituído finalmente o mito ao seu sentido primitivo, perdido há muito tempo. No cenário das novas necessidades, o mito se apresenta com a máscara do primogênito, do absolutamente primitivo: seu suposto conteúdo, em detalhes exíguos, segue sempre acompanhado de uma exuberância patética arcaica, que do ponto de vista retórico, contribui com a legitimação do novo sistema mais que aquele. O mito não é igual à ficção: mesmo que sua separação equivalha a uma esterilização, o mito leva consigo uma referência inapagável daquele contexto distante a partir do qual brotou e se formou: “vem de lá e desde lá aponta o deus a chegar” (Hölderlin – O Pão e o vinho). Justamente essa tensão entre o caráter primitivo do mito e sua autonomia, entre religião e arte, entre o perdido e o salvo, produz o inquietante do mito: o mito sempre sobreviveu a si mesmo, e todo sobrevivente é inquietante. 

Os estudos de Walter Burkert sobre a história da religião grega consistem o intento mais importante de entender o aspecto inquietante do mito grego que aparece no âmbito da língua alemã desde a segunda guerra mundial. O núcleo desse intento reside na suposição de uma correlação funcional primitiva entre o mito narrado e os feitos rituais do culto. As variadas fábulas com que se educava as crianças  na antiguidade e (ao menos até há bem pouco) às crianças de nosso tempo, eram mais que um aspecto da religiosidade grega: o mundo grego estava repleto de tempos e santuários nos quais, em intervalos regulares e conformes os costumes herdados dos antigos, se realizavam os ritos em honra às respectivas divindades. Cada comunidade possuía seus próprios cultos, intimamente mesclados ao modo como as pessoas entendiam a si mesmas. A religião grega foi, em alguns aspectos essenciais, uma religião de Estado: a administração dos cargos, das cerimônias e do calendário das festividades figurava entre as tarefas mais evidenciadas da comunidade e fundava sua identidade política. Nos deveres dos cidadãos os atos religiosos confundiam-se com os políticos a tal ponto que a separação conceitual entre religião e política, tão evidente para nós mesmos, não pode ser aplicada aos gregos sem algumas reservas. 

Agora, é certo que muitos mitos gregos nos hão chegado nas formas (de todo familiar para nós) que lhes deram os grandes poetas da antiguidade; contudo, para ter notícia sobre a maioria dos ritos dependemos dos textos mais áridos da erudição antiga – relatos de viagem, tratados, comentários de textos, enciclopédias – cujas informações fragmentárias, que em detalhes se contradizem ou dão margem para mal entendidos graves, podemos complementar ou corrigir apenas em alguns casos afortunados, graças a dados arqueológicos. A eles, é preciso adicionar que, por mais estranhos que por vezes nos pareçam os mitos gregos, de fato seguem parecendo-se para nós (como já se pareciam para a maioria dos informantes clássicos da antiguidade tardia) muito mais compreensíveis que alguns ritos gregos. Que significa, por exemplo, que em Braurón chamassem de “ursas” a umas garotas entre cinco e sete anos que, vestidas de cor açafrão, ofereciam sacrifícios à deusa Ártemis? Ou que as Grandes Dionisíacas, de Atenas, se levassem na solene procissão do sacrifício não apenas a efígie do deus e um touro, mas também um grande número de falos de tamanho sobrenatural? Não surpreende que manuais de mitologia precederam em muitos séculos as primeiras coleções científicas de testemunhos sobre os cultos antigos.

Há exatamente um século, os membros da chamada Cambridge School of Anthropology – W. Robertson Smith, Jane Ellen Harrison, James George Frazer – acreditaram haver encontrado a solução de tal enigma fazendo derivar os mitos de muitos ritos e explicando estes últimos mediante a comparação dos costumes dos povos “primitivos” daquele período. Assim, para Harrison, o mito era a contrapartida falada do ato que se executava no rito: aquele não se entendia sem este. No âmbito das línguas anglo-saxãs, tal concepção exerceu uma influência duradoura sobre a imagem que se tinha da cultura grega, mas nos estudos clássicos alemães nunca chegou a arraigar-se realmente devido, em parte, a um justificado ceticismo ante os paralelismos forçados e as generalizações pouco fundadas e em parte a uma resistência pouco econômica à mera ideia de que os gregos, exemplares de tudo, podiam equiparar-se em algum aspecto relevante aos “selvagens” povos primitivos. Como resultado de tudo isso, na Alemanha houve uma separação durante um tempo quase insuportável entre o estudo dos mitos e o estudo dos ritos: o estudo dos mitos se subordinava ao estudo dos poetas, já que estes haviam inventado livremente aquelas fábulas (Wilamowitz escreveu: “os mitos são sagrados; os poetas relataram e os transformam”), e ficava excluídos dos manuais de história da religião grega; por sua vez, os manuais se limitavam majoritariamente a oferecer uma exposição sistemática dos resultados da investigação dos ritos. A palavra religiosa e o ato religioso, e em última instância mantiveram-se separados até mesmo o poeta, que inventava a fábula, e seu povo, que executava vez ou outra, os ritos.

A obra de Burkert está dedicada a fechar essa brecha. Para ele o mito e o rito se iluminam mutuamente: o fato de tratar-se em um caso de uma narração paradigmática, e, em outro, de um ato paradigmático, não exclui em absoluta uma relação recíproca; permite-se uma relação na qual um e outro se complementem e apontem-se mutuamente com maior êxito. Nesse sentido, Burkert é certamente um herdeiro da Escola de Cambridge, mas distingue-se dessa, no final de contas, pela pretensão universalista de alcançar, mais além da constatação de determinadas relações locais entre a formação de mitos e ritos particulares, algumas estruturas fundamentais – e isso quer dizer, para ele, primogênitas - da convivência humana. Para Burkert, a mensagem do mito e do rito são a mesma, nas palavras de Nietzsche: “as energias terríveis – a que se chama mal – são os ciclopes arquitetos e engenheiros de caminhos da humanidade”. A ordem indispensável para toda convivência humana duradoura pressupõe não só uma pressão aos impulsos inatos da agressão e da destruição, mas também a liberação construtiva de suas energias. A violência não é apenas o oposto da ordem, mas seu pressuposto e sua força portadora. Certamente as perguntas centrais de Burkert – como pode a ordem integrar a violência sem sucumbir a ela? Como pode a civilização prescindir da barbárie? – se inspiraram nas teorias de Nietzsche e Freud, na antropologia e na etnologia dos últimos 50  anos, mas as aguçaram as catástrofes do nosso século. Cada um dos ensaios aqui reproduzidos trata de um determinado ponto crítico na vida das sociedades humanas – o sacrifício, a iniciação, a renovação, a purificação, a legitimação – e demonstra que sem o rito o mito não superaria a crise em questão, nem poderia sobreviver a sociedade ameaçada. Talvez, Burkert, desde um ponto de vista metodológico, tenha uma predileção decidida e quem sabe um pouco exagerada pelas origens (particularmente no paleolítico); mas sua admiração pelos ganhos da cultura grega, que soube unir o duradouro e o humano, desemboca em uma preocupação, sobretudo, prática e contemporânea: já é tarde para que aprendamos com os gregos?

Um encanto singular emana destes primeiros escritos de Burkert; mais de quarenta anos depois não perderam o frescor nem foram cientificamente superados, ainda que muitos dos temas que aqui se anunciam tenham sido aprofundados e refinados pelo próprio Burkert em publicações mais recentes. Esse efeito, quiçá, seja devido em parte a que os estudos clássicos alemães não tenham extraído ainda toda a consequências do descobrimento fundamental da relação recíproca entre rito e mito, que vem dando fruto nos estudos estadunidenses, franceses e suíços – muito mais receptivos, certamente ao influxo da antropologia estruturalista de Lévi-Strauss – ainda que seguramente também seja devido a que nestes escritos primeiros se manifeste, com maior claridade que nos anteriores e de forma mais detalhada uma tensão genuinamente literária. Por um lado, o tom destes ensaios é a todo momento distante e sombrio; o estilo é objetivo, a argumentação, sutil; o autor domina soberanamente todo o repertório das disciplinas auxiliares dos estudos clássicos – a arqueologia, a numismática, a epigrafia, a linguística indo-europeia – e as emprega com tato e precisão. Por outro lado, seus objetos prediletos são o sangue, a morte, a loucura, o asco , o terror. Uma vez ou outra, Burkert conduz o leitor desde o dia luminoso da humanidade grega até a horrenda noite das agressões desinibidas, de impulsos (auto)destrutivos que precedeu aquele dia, que ia assediando e ameaçando aniquilá-lo a cada instante. Da explosão apolínea de objetos dionisíacos que empreender Burkert, de sua contemplação científica dos perigos mais aterrorizantes, emana um efeito inquietante próprio e singular.

Referência

MOST, Glenn W. "Una exploración rigurosa de los orígenes selvajes: Walter Burkert sobre los mitos y ritos".  In: BURKERT, Walter. El Orígen selvaje: ritos de sacrifício y mito entre los griegos. Tradução de Luis Andrés Bredlow. Barcelona: Acantilado, 2011. [tradução do espanhol por Thiago Oliveira]

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Religião Grega Popular (Martin P. Nilsson)

Uma das principais funções do Diretório de Tradutores é disponibilizar material em língua portuguesa para os leitores brasileiros material de referência para os estudos da religião helênica. Nesse sentido, como parte das comemorações de dez anos do grupo Reconstrucionismo Helênico no Brasil, o Diretório de Tradutores torna público a tradução da obra Greek Folk Religion, publicada sob o título de Religião Grega Popular, do helenista sueco Martin P. Nilsson. A tradução pode ser visualizada no site do RHB junto com as outras atividades que integram as comemorações, ou clicando na imagem abaixo abaixo.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

Agathos Daimon

por Ellani Temperance
Tradução de Natalia Sciammarella
Revisão de Thiago Oliveira [retirado daqui]



No segundo dia do novo mês Helênico, nós oferecemos sacrifício para (o) Agathos Daimon, em um dia em homenagem ao “Bom Espírito”.  É uma prática importante, eu venho a compreender que eu não sei o suficiente sobre Agathos Daimon para fazer Seu culto de forma precisa. Este é o motivo deste post do Projeto Blog Pagão examinar sobre Sua adoração.

A mitologia, a aplicação e a existência do Agathos Daimon (ἀγαθός δαίμων) é uma bagunça um pouco confusa. Quando se pesquisa o termo, seis premissas básicas aparecem:

O Agathos Daimon é um Deus, casado com a Deusa Tyche (Ἀγαθή Τύχη, 'Fortuna)
O Agathos Daimon é um epíteto de Zeus, ou ligado a Zeus Ktesios e/ou Zeus Melichios
O Agathos Daimon está a Hermes Khthonios
O Agathos Daimon é um daimon da fertilidade, amarrado à colheita e prosperidade da agricultura 
O Agathos Daimon é um guardião individual do espírito, unido a pessoa, a família, ou ao oikos
O Agathos Daimon é a personificação da consciência pessoal, o até mesmo suas musas

Ainda confuso? Os Deuses sabem que estou.

Alguns fatos primeiro: Todas as fontes, exceto onde Agathos Daimon é identificado como Deus, representam o Agathos Daimon como uma cobra; isto aplica-se para ambas obras como aparência física assumida.  O Agathos Daimon sempre foi positivo em suas vidas, e geralmente era visto como fonte de boa sorte pessoal ou familiar. Libações de vinho (não misturado) eram oferecidas a ele de cada recém aberta garrafa de vinho, e durante banquetes e reuniões, Agathos Daimon recebia a primeira libação. Ao cruzar com uma cobra na estrada, era também de costume verter uma libação, no caso de ser um precursor do Agathos Daimon, ou o próprio Agathos Daimon. 

Eu sinto que devo recuar do Agathos Daimon um momento e falar sobre daimons em geral. Hesíodo nos deu nosso primeiro vislumbre sobre daimons ao escrever sobre os cincos Idades do Homem em Teogonia. Ele nos deu as seguintes referências:

“Primeiro de tudo os Deuses imortais, que residem no Olimpo, fizeram uma raça dourada de homens mortais que viveram no tempo de Cronos quando ele estava reinando no céu. [...] Mas após a terra ter ocultado essa geração – eles são chamados de espíritos puros habitando na terra, e são gentis, libertando do mal, e guardiões dos homens mortais; para eles vaguear por toda parte sobre a terra, vestidos de névoa e vigiar julgamentos e ações cruéis, doadores de riquezas; eles também receberam esse direito real.” 

“...então eles que moram no Olímpo criaram uma segunda geração de prata e de longe, menos nobre. Não era como a raça de ouro nem em corpo e bem em espírito. [...] No entanto, quando a terra também ocultou essa geração – eles são chamados pelo homem de espíritos abençoados do submundo, e, embora eles sejam de segunda ordem, também presta-se honras à eles.” 

A partir desse post, também a seguir, não nas palavras de Hesíodo, porém minhas:

Nas Idades de Hesíodo, fala-se apenas em uma raça que tornou-se daimons; Aqueles da Idade do Ouro, todavia aqueles da Idade da Prata e Heróica também receberam honras após sua passagem, e foram mantidos com alto respeito. [...] Hesíodo faz uma clara distinção entre os Theoi e daimon: Os Theoi são Deuses, daimons são membros da Idade Dourada que ganharam imortalidade. Essa diferenciação é um pouco menos pronunciada nos escritos de Homero, onde Deus e daimon são usados praticamente como sinônimos. 

Essa diferença levou a uma interpretação errônea sobre a natureza da raça da Idade de Prata: eles se tornaram daimons perigosos aos olhos de escritores posteriores (como Platão), e eventualmente os demônios do Cristianismo. Todavia, nem Homéricos ou Hesíodo nunca pretenderam ser assim: todos os daimons eram puros ou imortais; eles agiam como uma força policial para a humanidade. Daimons peenchem um importante buraco na mitologia e na vida: todos os aspectos da vida podem ser supervisionados por seres imortais, sem abandoná-los  – ou adicionando desnecessariamente – ao portifolio dos Theoi. 

Especialmente dentro dos Neo-Platônicos, veio a colocação dos daimons entre os Theoi e a humanidade. Eles são menos poderos que os Theoi, como menor domínio; mais interessados com os acontecimentos diários da vida do que os Theoi são, mas eles, também, são imortais, e merecem honras.  É importante notar, novamente, o destino feito entre daimons e Heróis; semelhante em termos de poder da vida humana, porém diferente em suas identidades, com os heróis tendo personalidades muito marcantes, realizações e culto, e os daimons não tendo nenhuma daquelas.  A primeira libação em reuniões eram ofericdas ao Agathos Daimon, e a segunda aos Heróis.

Retornando à definição de daimons; temos primeiro um tipo de daimon; bons espíritos de Hesíodo que nos vigiam, imortais, porém uma vez mortal. Em seguida – dentro dos escritores como Platão e seus estudantes e filósofos seguintes – dois tipos, um prestativos, o outro perigoso. Curiosamente, Wikipedia relata o seguinte sobre a divisão entre “bons” e “maus” daimons: 

“Um cacodemon (ou cacodaemon) é um espírito mau ou (no sentido moderno da palavra) um demônio. O oposto de cacodemon é um agathos daimon ou eudaemon, um espírito bom ou anjo. A palavra cacodemon veio para o Latim do Grego antigo κακοδαίμων (kakodaimōn) significando um espírito mau, ao passo que daimon seria um espírito neutro em grego e Tychodaimon seria um espírito bom.”
Grifo meu.
 Aquelas são duas definições opostas como em muitas sentenças, levando uma bagunça confusa que iguala os termos 'agathodaemon' (Agathos Daimon?), 'Eudamonio' e 'Tychodaimon'. Um bom exemplo da utilidade da Wiki como o início da pesquisa, mas nunca seu fim. Então vamos tomar esses termos e cavar um pouco mais fundo. Especialmente o termo 'Tychodaimon' parece ter uma fonte clara, mesmo (ou especialmente) em relação ao Agathos Daimon: em alguns cultos devocionais, Agathos Saimon era o uma deidade masculina, que foi casado com a Theia (daimon?) Agathe Tyche. Sua adoração foi conhecida em Atenas, e Eles tiveram um templo em Lebadeia, na Beócia, onde poderia visitar o oráculo de Trofônio – mas só depois de passar um número fixo de dias em um edifício, que era sagrado para a 'Agathei Theoi' - que provavelmente se refere à Agathe Tyche e Agathos Daimon juntos - e provavelmente abrigado uma ou várias cobras(s). Foi neste edifício que o suplicante foi trazido de volta quando retornou do oráculo — geralmente passado a experiência - a fim de se recuperar (Harrison).

Recapitulando: com os Neo-Platônicos veio a noção de que os daimons de Hesíodo são mais inferiores do que os Theoi na ordem hierarquica, ainda que Agathos Daimon fosse adorado como um Theo em Atenas e Labadeia no tempo de Platão, e certamente na época de seu aluno Xenocrates, quem promoveu a teoria de Platão sobre daímōns. Provavelmente Agathós Daímōn, os Theos, tinha sido separdo dos daímōns sem gênero de Hesíodo anos anteriores, e já não era considerado um daímōn no sentido clássico, mas tinha sido elevado a um Theos, digno de sacrifício regular. As perguntas, então, tornam-se: quando e como?

É Interessante notar que Agathos Daimon é mencionado como recebendo libações de vinho não misturado, em vez do padrão de libações misturadas dos deuses olímpicos. Este aspecto ctônico de Seu culto traz-me duas explicações possíveis da natureza do Agathos Daimon: um link com Zeus Melchuio (“aquele amável”), um epíteto ctônico de Zeus, e um link com Zeus Ktesios, o protetor domiciliar.  Obras de artes encontradas em Labadeia sugere um casamento entre Zeus Meilikhios  e Agathe Tyche, Zeus Meilikhios  – como Agathos Daimon e Zeus Ktesios – é um Deus cobra, frequentemente representado como uma também. 

Deve ser dito que Harrison acredita que Zeus Meilikhios  é um epíteto de Zeus sobreposto a um existente Deus cobra: Meilikhios , um ‘doméstico, da casa, autóctones [deidade de] antes da formulação de Zeus’. Ainda mais dizendo: Ainda mais dizendo: o culto da Meilichios foi muito pronunciado na Beócia, onde ele era venerado como um provedor de riqueza (Harrison, p. 21). Eu coloco que, ao mesmo tempo Zeus tornou-se igualado à Meilikhios , assim o fez o Agathós Daímōn; um daímōn da boa fortuna (provavelmente através da fertilidade e boa colheita, as dois maiores bênçãos do Theoi), sobrepondo ao Deus cobra Meilikhios , trocando qualidades positivas enquanto assumindo a imortalidade para Si mesmo. Zeus Meilikhios  adotou as qualidades de limpeza e purificação de Meilikhios.

Como alternativa - ou, talvez, em segundo lugar - Zeus Ktesios (outro Deus cobra) tornou-se igualado Agathós Daímōn, e trouxe a adoração ao Agathos Daimon para o lar, adicionando Suas bênçãos de fertilidade e 'boa sorte' (agora é um termo geral) para o início do novo mês. Isso também explicaria por que Agathós Daímōn era honrado no próprio dia e não na Noumenia, juntamente com Zeus Ktesios; os dois são entidades separadas, que fornecem bênçãos muito distintas - Zeus Ktesios guarda a dispensa de comudida e contribui para a prosperidade da casa, enquanto que o Agathos Daimon fornece as bênçãos de fertilidade e boa sorte, um traço herdado de Meilikhios  e sua esposa, Agathe Tyche, quem nunca fez isso no domínio doméstico.

Então, isso envolve três das teorias conectadas ao Agathos Daimon. Harrison propõe um link como outra deidade conhecida: Hermes Khthonios. Gostaria de encorajar o leitor a ir à fonte para sua explicação, a partir de página 294, mas a evidência - para mim - é frágil, na melhor das hipóteses. Sim, há referência a 'daimon' em escrita antiga, mas como já vimos em Homero, isso não é prova firme da teoria. Além disso, apesar de Hermes ser muitas vezes representado com cobras, não é obrigatório para Hermes Khthonios ser retratado com eles, e não há nenhuma evidência artística de uma forma de serpente para Hermes, não importa o epíteto.

O Agathos Daimon sendo um guardião espiritual pessoal ou a personificação de uma consciência - ou mesmo sua musa - essa idéia parece ser uma evolução neo-platônica dos daimos clássicos de Hesíodo, popularizado por Sócrates (e seus seguidores), que descreveu seu daimon pessoal em seu julgamento. Da apologia de Platão:

"Você tem freqüentemente me ouviu falar de um oráculo ou sinal que vem a mim e é a divindade que Meletus ridiculariza na acusação. Este sinal eu tenho desde que eu era uma criança. O sinal é uma voz que vem a mim e sempre me proíbe de fazer algo que eu vou fazer, mas nunca me ordena a fazer algo, e isso é o que fica no caminho de ser um político".

Como já vimos, Agathos Daimon foi separado de seus primos de Hesíodo até então, e temos de assumir que o termo 'Agathos Daimon' é um termo incorreto para os orientadores espirituais de Sócrates e Platão. Talvez 'eudaemon', na verdade, seria um termo melhor - não um sinônimo como Wikipédia sustenta, mas indicando claramente entidades separadas com uma origem comum.

Até que outra evidência venha a mim, irei cultuar um theos da fertilidade e da prosperidade, Agathos Daimon, no segundo dia do novo mês - a primeira vez no domingo. Como minha teoria-- porque é definitivamente uma teoria!- realiza-se em seus pontos de vista e dentro de sua prática? Estou ansiosa para seus pensamentos.

Notas:
Crédito da imagem: uma moeda de Nyrva, retratando o Agathos Daimon. Publicado em Harisson ' Epilegomena para o estudo da religião grega: e Themis: um estudo de origens sociais da religião grega '.

Não somos todos a mesma coisa, e isso é ótimo!

por Tess Dawson
Tradução de Josie Machado [retirado daqui]


Nota do revisor: O texto a seguir não trata especificamente sobre o Hellenismos; todavia, o escopo do trabalho desenvolvido aqui é maior que o Hellenismos em si, e coaduna com uma preocupação de também esclarecer sobre a diversidade religiosa, e em especial sobre o reconstrucionismo. No texto a  seguir, Tess Dawson, um adepto do paganismo cananeu reconstruída oferece uma leitura acessível e esclarecedora sobre as multiplicidades que o termo "paganismo" composta, e resumo sua proposta na sentença: não somos a mesma coisa, e que bom que não somos.

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Esses argumentos recentes de arquétipos ou super-heróis como divindades é um fator pelo qual eu não me considero mais Pagã e já não tenho me considerado por vários anos. O debate é sintoma de uma divergência maior nas crenças fundamentais entre as religiões politeístas histórico-enraizadas e o Paganismo Neo-romântico convencional.


As duas principais filosofias não podem ser resolvidas, e quanto menos tempo gastarmos tentando convencer uns aos outros qual lado é o correto, mais tempo teremos para gastar construtivamente e pacificamente em esforços inter-religiosos. Eu uso o termo inter-religioso com boas intenções. Não somos das mesmas religiões, nem ao menos das mesmas categorias de religiões. E isso é bom. Respeitar nossas diferenças é importante, pois esse respeito não vem de tentativas de transformar as diferenças em semelhanças. Respeitar diferenças não significa homogeneização da diversidade.

E vamos encarar isso. Existem algumas pessoas antiquadas reforçando diferenças entre Paganismo neo-romântico convencional e religiões politeístas histórico-enraizadas.

Pagãos neo-românticos que acreditam que o ‘eu’ é o núcleo da espiritualidade e que confiam nas idéias de Jung, Freud, Frazer e Campbell frequentemente se sentem perturbados quando alguém diz que eles estão errados – especialmente quando acreditam que um indivíduo não pode estar errado quanto sua espiritualidade. É como se eles acreditassem que a outra pessoa seja tão fechada no dogma que ele/ela simplesmente não entende o que é a verdadeira espiritualidade. Da mesma forma que uma pessoa que adere a uma religião politeísta histórico-enraizada (não uma espiritualidade, mas uma religião) geralmente vai acreditar que os adoradores de arquétipos ou super-heróis de histórias em quadrinhos são blasfêmias. Existe um pequeno meio termo para discussão sobre a vitimização/anti-dogma contra a situação sacrilégio, e essa situação é exarcerbada pela ideia que somos, de algum modo, todos partes de uma mesma categoria de religião chamada Paganismo.

Enquanto tentarmos nos aderir na mesma categoria continuaremos a ter argumentos como esses, porque nós vemos a religião apenas por duas premissas básicas. Da posição de separação, é mais fácil de ser respeitoso com as outras crenças, e as pessoas se sentem menos como nós tentando definir as crenças uns dos outros. Podemos dizer no final do dia, “Eu não concordo com você, mas eu aprecio você”!

Se fizermos as pazes com essa separação, então não haverá argumentos e nem a necessidade deles. Esse argumento se parece muito com Cristãos e Hindus tentando convencer uns aos outros quem é mais correto. Sim, o Paganismo convencional como é agora, com as tendências neo-românticas e as fortes influências ecléticas Wiccanas, é tão diferente das religiões politeístas histórico-enraizadas como o Cristianismo é do Hinduísmo.

Quão diferente a diferença pode ser? Veja essa lista de uma visão global das diferenças entre Natib Qadish (uma religião politeísta histórico-enraizada) e o Paganismo neo-romântico convencional:

• Natib Qadish não é “terra-centrada”. Estamos primeiramente centrados nas divindades, em seguida, centrados na comunidade, e em terceiro lugar respeitamos a natureza. Somos urbanos, civilizados e ‘amigos da tecnologia’. Nós não adoramos a terra ou a “mãe-terra”.
• Divindades são seres vivos individuais separados, dignos do meu mais profundo respeito. Eu me inclino para honrar minhas divindades.
• Nossa religião não é monoteísta ou dualista, é politeísta. As divindades não são facetas de uma força divina, nem representações masculinas/ femininas da dualidade cósmica. E com certeza eles não são arquétipos. Nós também não acreditamos que essas divindades sejam construções da mente humana.
• O Shanatu Qadishtu, nosso calendário sagrado tem feriados diferentes e o ciclo sazonal Mediterrâneo. Isso significa que não comemoramos Samhain, Yule, Imbolc, Ostara, Beltane, Litha, Lughnasadh, ou Mabon. O ciclo sazonal Cananita tem o calor, a estação das secas e a estação das chuvas com uma pequena transição entre as duas, e dois ciclos de crescimento para grãos e frutas.
• Minha religião não é Indo-Européia, mas Afro-Asiática. Não nos baseamos na religião do norte europeu, nem se a forma antiga de nossa religião influenciou o Judaísmo e o Cristianismo, que por sua vez influenciou fortemente o Norte Europeu.
• Não praticamos bruxaria e evitamos a palavra “bruxa”
• Não trabalhamos com “energia”. Trabalhamos com o napshu, um conceito da alma.
• Em geral, não lançamos círculos, usamos sálvia, ou vemos o corpo no sistema de chakra indiano. Usamos mirra para limpeza e temos espaços sagrados. Quanto à sabedoria do corpo, o coração representa a mente, o fígado representa as emoções, os joelhos representam bênção, as mãos representam proteção ou benção, os olhos podem enviar tanto bênçãos quanto maldições, e a cabeça representa honra.
• Não praticamos a Lei dos Três ou Nenhum adágio do mal, mas temos um conceito de “pecado”.
• Fazemos ofertas a nossas divindades. Geralmente essas ofertas incluem carne, mas não de porco.
• Podemos contar com os dispositivos de adivinhação de acordo com o simbolismo Cananeu: interpretando de sonhos (sem conceitos junguianos), lançando sortes, usando as letras Fenícias e vidência. Você não iria a um babalawo [1] para uma leitura de tarô, então, por favor, não espere isso de mim.
• Nossa linguagem religiosa e nossos símbolos religiosos são diferentes porque foram construídos sobre uma cultura diferente.
• Eu cubro minha cabeça em respeito às divindades o tempo inteiro. A maioria de nós, cobre pelo menos durante os eventos sagrados.
• Meu altar é em um templo e eu faço uso apenas para ofertar às divindades, não como um lugar para tchotchkes [2] brilhantes e reflexão pessoal. Eu tenho um santuário menos formal que não tem as mesmas restrições – e sim, eu tenho tchotchkes em meu santuário. Esse pássaro no alto à esquerda? É o meu próprio tchotchke. Um santuário não é o mesmo que um altar, e um altar não é o mesmo que um santuário. A maioria de nós possui santuários.
• Os Cananeus antigos são seletivamente ecléticos, às vezes honrando divindades diferentes de culturas vizinhas do mesmo estilo Cananeu. Mesmo assim, somos cuidadosos com o que fazemos em um ambiente religioso.

Outras religiões politeístas histórico-enraizadas terão seus próprios conjuntos de diferenças da minha, e do paganismo neo-romântico convencional.

Wicca é bom, Neo-romantismo é bom, Paganismo é bom. Ter uma espiritualidade, independente da religião, é bom. Para as pessoas que querem acreditar em arquétipos como divindades, se isso é o que vocês realmente acreditam, tudo bem, mesmo que eu considere isto ateísmo. Como de costume eu respeito diferentes crenças, mesmo que eu discorde; mesmo que eu ache que você está errado, e mesmo se você ache que eu esteja errada. Mas tenho meus limites. Se outra pessoa acredita que meus limites são frágeis enquanto outra acredita que eles são fortes, não me importa, eu os tenho de qualquer maneira. Uma vez ouvi um adágio “não deixe sua mente tão aberta que seu cérebro cairá,” e eu levo a sério.

Para aqueles que querem adorar personagens de histórias em quadrinhos, vão em frente se vocês acreditam, mas, por favor, não esperem que eu leve sua espiritualidade a sério, e, por favor, não esperem que eu pertença à mesma categoria religiosa “Umbrella” que aceita isso. Para registro, eu também tenho duvidas sobre a “otherkin.,” [3] e não acredito em um passado matriarcal. Cthulhu [4] não existe. Aliens não construíram as pirâmides ou Stonehenge. Todo mundo tem limites, mesmo em matéria de crença e religião, e isso não significa que eu te odeio.

Nós não somos todos Um, e isso é bom!

Notas:
1. Nome dado aos sacerdotes exclusivos de Orunmilá-Ifá do Culto de Ifá na religião youruba, das culturas Jeje e Nagô. 
2. Itens diversos.
3. Comunidade de pessoas que se vêem parcial ou totalmente não-humanos.
4. Entidade cósmica fictícia criada pelo escritor de terror H. P. Lovecraft em 1926.